Ao longo de toda nossa vida, somos expostos à linguagem informal do pronome pessoal "você". O uso de "você" como pronome de tratamento é uma forma coloquial comum de se comunicar no meio social. No entanto, frequentemente, a concordância verbal não é eficaz ao se empregar esse pronome, como podemos observar no exemplo: "A gente chegou às nove da noite", em que "a gente" se refere a mais de uma pessoa, indicando pluralidade, enquanto o verbo "chegou" está no singular, havendo, assim, uma falta de concordância na frase apresentada.
O que muitos de nós talvez não percebam é que estamos cercados por essa informalidade nas formas verbais ao utilizarmos o pronome pessoal "você", o qual, por sua vez, é uma forma inadequada de comunicação. Se analisarmos mais de perto como nos comunicamos com outras pessoas, iremos nos deparar com a falta de concordância, o que pode ser considerado uma agramaticalidade.
Mas, por que falamos dessa maneira, professor? Tudo isso se relaciona com a gramática internalizada. Mesmo aqueles que são analfabetos aprenderam um conjunto de regras e funções sintáticas para se comunicar no meio social em que vivem. Eles estão falando uma língua que serve para estabelecer comunicação, e, com o uso frequente, não há julgamento ou crítica a essa linguagem utilizada para se comunicar com outros indivíduos.
Por exemplo, se dissermos "a gente chegamos às nove da noite", causaria grande risada devido à falta de concordância entre o pronome pessoal "a gente" e o verbo "chegamos". No entanto, quando alguém diz, por exemplo, "tu é bonita", "tu chegou às nove da noite" ou "tu estudou muito", não há risadas, e ninguém percebe o desvio gramatical nessas frases. Se conjugarmos os verbos nesses casos: "tu és", "tu chegaste", "tu estudaste", veremos que são as formas gramaticais corretas do português padrão. No entanto, a linguagem coloquial é internalizada e, portanto, aceita naturalmente por todos os falantes, como ressalta Marcos Bagno em "Português ou Brasileiro" (2004), que explica que a língua é um sistema de regras que constituem a estrutura de funcionamento do idioma e que são assimiladas naturalmente por meio da prática por todos os falantes.
Assim, é importante ter cuidado ao usar pronomes pessoais, principalmente para aqueles que farão vestibulares ou provas de processos seletivos que exigem o uso da norma culta com mais rigor. Nesses casos, a predominância do pronome "tu" é mais apropriada para estabelecer um padrão de comunicação que atenda aos requisitos dos conteúdos programáticos das provas de vestibulares. Isso não significa que devemos eliminar o uso do pronome de tratamento "você", que ainda é aceitável, mas ele não segue as normas gramaticais e não produz a concordância verbal adequada quando anteposto aos verbos.
A Linguagem como Reflexo da História: A Expressão "Vossa Mercê" nos Tempos da Escravidão
A língua é uma entidade viva e dinâmica, moldada por inúmeras influências ao longo da história. Um aspecto fascinante dessa evolução linguística é como as relações de poder e a estrutura social de uma época podem deixar uma marca indelével na maneira como nos comunicamos. No contexto da história brasileira, podemos encontrar um exemplo notável dessa influência nas expressões de tratamento, particularmente a expressão "Vossa Mercê."
Durante o período colonial do Brasil, a sociedade estava profundamente dividida em classes, e uma dessas divisões mais significativas era a dos senhores e escravos. Os senhores detinham o poder, enquanto os escravos viviam sob condições de servidão. Essa estrutura social rígida também se refletia na linguagem usada.
Os senhores eram frequentemente tratados com grande deferência, e a expressão "Vossa Mercê" era usada como uma forma de respeito. Era uma maneira de se dirigir a alguém em posição de autoridade, reverência e prestígio. Em contraste, os escravos eram frequentemente chamados por pronomes pessoais mais informais, refletindo a diferença em suas posições sociais.
O uso de "Vossa Mercê" ecoa uma era em que a desigualdade era institucionalizada, e a língua estava intrinsecamente ligada a essa hierarquia. Os escravos, cujas vidas eram marcadas pela falta de liberdade e direitos básicos, usavam expressões menos formais para se referirem aos senhores, como "você."
Hoje, à medida que refletimos sobre nossa história e as implicações da linguagem, é importante reconhecer como essas convenções linguísticas eram uma manifestação da desigualdade e da opressão que marcaram a época da escravidão no Brasil. Embora a sociedade tenha evoluído consideravelmente desde então, é essencial mantermos essa conscientização, lembrando-nos de como a língua pode refletir e até perpetuar desigualdades sociais.
Portanto, ao explorar a história da língua portuguesa e suas nuances sociais, podemos ganhar uma compreensão mais profunda de como a linguagem é intrinsecamente conectada à nossa história e cultura, bem como como a evolução linguística pode refletir mudanças em nossa sociedade ao longo do tempo. É um lembrete poderoso de que a linguagem não é apenas uma ferramenta de comunicação, mas também uma janela para nossa história e identidade cultural.
Considerações:
Conscientização Linguística: No nosso dia a dia,
muitas vezes utilizamos a forma coloquial do pronome "você" sem
perceber que ela pode levar a erros de concordância verbal. Isso nos lembra da
importância de conhecer as regras gramaticais e aplicá-las adequadamente para uma
comunicação mais eficaz.
Gramática Internalizada: É surpreendente como até
mesmo pessoas que não tiveram educação formal em gramática têm uma gramática
internalizada que lhes permite se comunicar eficazmente em seu contexto social.
Isso destaca a natureza intrínseca da linguagem humana.
Variação Linguística: O texto ressalta a variação
linguística e como diferentes contextos permitem diferentes formas de
comunicação. Enquanto a linguagem coloquial é perfeitamente aceitável em
ambientes informais, é fundamental reconhecer quando adotar uma linguagem mais
formal, especialmente em situações acadêmicas ou profissionais.
Relevância para o Ensino: Essas reflexões também nos
fazem pensar sobre como a gramática pode ser ensinada de maneira mais acessível
e prática. O objetivo é que os estudantes não apenas conheçam as regras
gramaticais, mas também saibam como aplicá-las de forma efetiva em situações do
mundo real.
Uso de "Tu": Em muitas regiões do Brasil, o
pronome "tu" é mais comum em contextos formais, enquanto o
"você" prevalece em situações informais. Isso ilustra a rica variação
regional presente em nossa língua.
Referência a Marcos Bagno: O autor Marcos Bagno é
mencionado como uma autoridade no assunto. Pode ser interessante explorar mais
a fundo suas ideias sobre língua portuguesa, variação linguística e como isso
afeta o ensino da gramática.
Norma Culta vs. Variações Regionais: Reconhecer a
importância da norma culta da língua, ao mesmo tempo em que valorizamos as
variações regionais, nos ajuda a compreender melhor a diversidade e a dinâmica
da nossa língua, que refletem a rica cultura e história das diferentes regiões
do Brasil.
Preservação Cultural: A linguagem é uma parte
essencial da cultura de um povo, e a maneira como falamos muitas vezes reflete
nosso passado e tradições. No contexto do Brasil, entender como os pronomes de
tratamento evoluíram ao longo do tempo nos ajuda a apreciar a rica tapeçaria
cultural do país. É uma forma de honrar a história e o legado das gerações
passadas.
Respeito e Inclusão: Hoje, à medida que a sociedade
se torna mais consciente das questões de igualdade e inclusão, é crucial
refletir sobre como usamos a linguagem. Embora tenhamos deixado para trás
muitas das práticas discriminatórias do passado, ainda podemos encontrar
vestígios delas em nossa fala cotidiana. Reconhecer essa realidade nos lembra
da importância de usar a linguagem de maneira respeitosa e inclusiva.
Desconstrução de Estereótipos: O uso histórico de
pronomes de tratamento reflete estereótipos e hierarquias sociais profundamente
enraizados. Conscientizar-se desses estereótipos e entender como a linguagem
foi usada para mantê-los é um passo importante na desconstrução dessas ideias
preconceituosas. Isso nos ajuda a avançar em direção a uma sociedade mais justa
e igualitária.
Educação e Conscientização: Ao explorar essas
questões históricas relacionadas à linguagem, podemos usar essa compreensão
para educar as gerações futuras. Incluir a história da evolução linguística em
programas de educação pode ajudar os alunos a apreciar a complexidade da língua
e a importância de usá-la com sensibilidade.
Linguagem em Constante Evolução: A língua é dinâmica,
e a forma como falamos hoje é resultado de séculos de mudanças e influências.
Ao entender essa evolução, podemos abraçar a diversidade linguística e cultural
que enriquece nossa sociedade. Isso nos lembra que a língua não é estática, mas
sim uma ferramenta que se adapta e reflete as transformações sociais.
O Poder da Palavra: A linguagem tem o poder de moldar
nossa percepção do mundo e influenciar nossas interações sociais. Reconhecer
como as palavras foram usadas no passado para manter estruturas de poder nos
lembra que a escolha das palavras importa. Ela pode ser usada para unir ou
dividir, para empoderar ou oprimir, e é nossa responsabilidade escolher
sabiamente.
Diálogo Intercultural: Ao explorar as nuances da
linguagem, também promovemos um diálogo intercultural enriquecedor. Isso nos
permite entender melhor não apenas a história do Brasil, mas também como outras
culturas enfrentaram desafios semelhantes em sua evolução linguística.
Mudança Social Contínua: A conscientização sobre a
evolução da linguagem e sua relação com questões sociais não é apenas uma
reflexão sobre o passado, mas também uma chamada à ação para moldar o futuro. À
medida que a sociedade evolui, nossa linguagem também deve evoluir para
refletir os valores de igualdade, respeito e inclusão.
Em última análise, a linguagem é uma ferramenta poderosa que
não apenas nos permite comunicar, mas também reflete nossa identidade cultural
e social. Ao compreender suas complexidades, podemos contribuir para uma
sociedade mais justa e inclusiva, onde todos têm a oportunidade de serem
ouvidos e respeitados, independentemente de sua origem ou história.